segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Estudo revela os altos e baixos do diabetes no dia a dia

Há quase 100 anos, cientistas canadenses fizeram uma das maiores descobertas da história da medicina: identificaram um hormônio essencial à sobrevivência de qualquer ser humano, a insulina. Graças a seu achado, não só entendemos melhor de que forma o organismo aproveita a glicose das refeições como foi dada a largada para o tratamento de uma doença que, naquela época, era letal, o diabetes.

Um século depois, o avanço nas pesquisas e no setor farmacêutico permitiu que milhões de pessoas com o problema pudessem viver anos e anos de forma digna. Se no passado as injeções empregavam hormônios extraídos de animais e dependiam de agulhas grossas e dolorosas, hoje as moléculas concebidas em laboratório e as canetas de aplicação com ponta finíssima tornaram o dia a dia mais tranquilo.

Mas isso não significa que acabaram os desafios. Até porque não existe uma pílula (ou injeção) mágica que cure o diabetes. Seu controle depende de conscientização, uso correto das medicações e adoção de hábitos saudáveis. E é aí que batemos de frente com as dificuldades que perseguem a rotina de pacientes e familiares.

Para entender o impacto da doença, as falhas e barreiras ao tratamento e outras percepções e comportamentos dos brasileiros que convivem com a condição e o uso de insulina, VEJA SAÚDE e o núcleo de Inteligência de Mercado do Grupo Abril realizaram, com o apoio da Novo Nordisk, a pesquisa “Os Altos e Baixos do Diabetes na Família Brasileira”.

Por meio de questionários respondidos pela internet por mais de 1 300 pessoas com diabetes tipo 1 e tipo 2 e esposos, filhos ou pais de pacientes, o estudo pinta um panorama do que pode ou precisa mudar no rol de cuidados a fim de melhorar a saúde de quem tem a doença e o bem-estar da casa toda. “A pesquisa mostra gargalos de educação ao paciente e traz informações úteis não só para empoderá-lo mas também para conscientizar quem está no seu entorno”, avalia o endocrinologista, curador do projeto e colunista de VEJA SAÚDE, Carlos Eduardo Barra Couri.

“E nos convoca como médicos a aprimorar a orientação dada em consultório e por outras vias”, completa o também coordenador do Endodebate, evento em que o levantamento foi apresentado virtualmente a mais de 3 mil profissionais. A maioria dos pacientes entrevistados tem pelo menos cinco anos de diagnóstico e uso da insulina, o que pressupõe maior conhecimento e prática com o tratamento. Ainda assim, foram identificadas situações preocupantes envolvendo a aplicação correta do hormônio, a monitorização da glicose, o manejo da hipoglicemia e a adesão a hábitos bem-vindos.

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<span class="hidden">–</span>Infográfico: André Moscatelli/SAÚDE é Vital
<span class="hidden">–</span>Infográfico: André Moscatelli/SAÚDE é Vital

Uso de insulina: entre falhas e barreiras

“A pesquisa mostra que boa parte dos pacientes com diabetes reconhece as atitudes que ajudam a controlar o problema mas não está conseguindo aplicá-las na rotina”, conclui Couri, que é pesquisador da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Esse paradoxo entre o conhecimento e o hábito se faz sentir no passo a passo do tratamento e no próprio estilo de vida — quase metade dos respondentes enxerga na alimentação e na prática de exercícios os maiores desafios para o controle da doença.

O próprio uso da insulina ainda está cercado de erros, vícios e obstáculos. Para quem não está familiarizado com o assunto, cabe esclarecer que as insulinas, receitadas para todos os indivíduos com diabetes tipo 1 e geralmente a quem convive há mais tempo com o tipo 2, se dividem em medicações de ação lenta e ação rápida.

A primeira classe tem um efeito de longo alcance durante 12 ou 24 horas; a segunda se presta a mandar a glicose para as células assim que o indivíduo se alimenta. A insulina rápida deve ser aplicada cerca de 15 minutos antes da refeição e pede que o paciente fique de olho na glicemia nesse período e calcule a dose correta de acordo com o que vai ser consumido.

E tem que fazer isso sempre para não injetar nem hormônio de menos — o que deixará açúcar sobrando no sangue — nem de mais, o que pode resultar em quedas acentuadas, as hipoglicemias.

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No levantamento, chama a atenção que é expressivo o número de pessoas que não aplicam no momento certo e 44% se valem de uma dose fixa da medicação, isto é, não reajustam de acordo com a necessidade daquele momento. “Outro ponto é que a maioria não faz contagem de carboidratos, um cálculo voltado às refeições para definir a dose de insulina e para o qual já existem até aplicativos no celular”, observa Couri.

Além disso, 43% dos participantes admitem não utilizar a injeção em algumas circunstâncias, a maioria por esquecimento. “Tudo isso aumenta o risco de efeitos imediatos do descontrole da doença, como hipoglicemias, e de complicações no longo prazo, caso de problemas no coração, nos olhos, nos rins…”, alerta o médico.

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Outro dado crítico é o monitoramento da glicose aquém do ideal: 60% checam o valor menos de quatro vezes ao dia; 82% não o fazem no meio da noite, período em que podem ocorrer episódios de hipoglicemia; e 41% não medem após as refeições. Para quem faz uso de insulina rápida, esse descuido pode impactar diretamente o êxito do tratamento e seus efeitos colaterais, como as famigeradas quedas bruscas nos níveis de glicose no sangue.

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Nem todo diabetes é igual

Embora levem o mesmo nome, diabetes tipo 1 e tipo 2 são doenças diferentes. No primeiro, que tende a ser detectado na infância ou adolescência, o sistema imune se volta contra o pâncreas, nossa fábrica de insulina, que deixa de produzir o hormônio — aí tem que aplicar a medicação desde o início.

O tipo 2 é aquele que costuma aparecer com a idade ou com o ganho de peso. No começo, é domado com estilo de vida e comprimidos, mas existe a perspectiva de que o médico tenha de convocar a insulina quando o pâncreas não dá mais conta do recado.

Na pesquisa “Os Altos e Baixos do Diabetes na Família Brasileira”, como apontado, foram ouvidas pessoas com ambas as condições. Embora pacientes com diabetes tipo 1 sofram mais com as hipoglicemias, o estudo mostra que eles estão mais cientes e ativos no tratamento.

O fantasma da hipoglicemia

Não medir a glicose nem usar a insulina como manda o figurino é um prato cheio para um tormento na vida de quem tem diabetes (e seus familiares): as hipoglicemias. Elas aparecem quando a glicose fica abaixo de 70 mg/dl e, embora nem sempre deem sintomas, costumam se manifestar com suor frio, tremores, sensação de mal-estar e até perda de consciência.

Na pesquisa, quatro em cada dez pacientes relatam ter episódios pelo menos uma vez por semana. “O que complica ainda mais é que muitas pessoas dizem passar por isso quando estão trabalhando, se exercitando ou dirigindo”, assinala Couri.

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“Embora não tenhamos de medir esforços para evitar a hipoglicemia, é muito difícil que ela não apareça quando saímos da rotina”, avalia Vanessa Pirolo, coordenadora de advocacy da Associação de Diabetes Juvenil (ADJ ). A jornalista e ativista fala com a experiência e a propriedade de quem convive com o diabetes tipo 1 e o uso de insulina há duas décadas, desde os 18 anos.

Para manter a doença sob rédeas curtas e minimizar o risco de hipo, ela mede a glicose no mínimo sete vezes ao dia e fica esperta a qualquer mudança no cotidiano. “Se eu pedir pizza em um local diferente do habitual, preciso me ajustar e permanecer mais atenta”, exemplifica.

Vanessa, que também é coautora do livro Doenças Crônicas – Saiba como Prevenir! (Editora Labrador), vê com aflição o achado do estudo de que mais de 20% dos pacientes só consideram uma hipo quando o açúcar despenca para menos de 54 mg/dl: “Isso mostra que algumas pessoas não sabem que decisão tomar com o valor da glicose”.

Os episódios de hipoglicemia no escritório, na academia e até no trânsito também nos remetem à necessidade de preparar melhor o círculo social para que as pessoas saibam identificar um episódio do tipo. Segundo os participantes, há muito a ser feito nesse sentido. Os próprios familiares reconhecem que necessitam ser mais bem treinados: metade diz não estar totalmente apta a lidar com uma crise.

Diante de uma hipo, os especialistas sugerem dar ao paciente uma fonte de glicose quanto antes, de preferência o sachê de açúcar líquido. “É fundamental que o paciente saia de casa munido disso e da carteirinha de identificação de que tem diabetes, pontos que deixaram a desejar em nossa pesquisa”, nota o pesquisador da USP.

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Olha o coração!

No estudo, pacientes e familiares foram convidados a apontar quais complicações do diabetes mais despertavam medo neles. Para quem tem a doença, o primeiro lugar ficou com os problemas de visão, seguidos por amputação e insuficiência renal. Na família, lideraram as crises de hipoglicemia.

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Contudo, em ambos os grupos, as doenças cardiovasculares não ficaram no topo das preocupações. “Precisamos reverter essa percepção, uma vez que os problemas do coração são a principal causa de morte entre quem tem diabetes”, interpreta Couri.

É que, com o tempo, o excesso de açúcar no sangue pode lesar os vasos. Quando isso se soma a fatores como hipertensão e colesterol alto, decola o risco de infarto, AVC e outros perigos pelas artérias.

A orientação do médico

Convenhamos que não é fácil aderir a tantas recomendações no dia a dia, mas as vantagens para a saúde mostram que vale a pena o investimento. No entanto, para que as pessoas com diabetes entendam como se cuidar e saibam lidar com as individualidades no tratamento, a orientação médica também é decisiva.

E aí o bicho pega! Mais da metade dos pacientes diz não ter um canal de comunicação com o médico além das consultas presenciais — como é que ele vai ter certeza do reajuste da dose de insulina sem falar com o doutor? E 36% afirmam que a primeira consulta não foi satisfatória em relação às explicações sobre a aplicação do hormônio.

“Uma consulta detalhada e o contato com o médico fazem diferença no controle da doença, mas sabemos que nem todo brasileiro tem acesso a isso”, analisa o coordenador do Endodebate. Vanessa lembra que, no SUS, dificilmente o paciente terá mais de 15 minutos com o profissional e sairá com seu número de celular. “Precisamos educar paciente e médico e investir em uma abordagem multidisciplinar”, defende a representante da ADJ, que batalha para ampliar o acesso dos pacientes a informação e medicamentos.

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O papel da família

Nesse contexto todo, a família é capaz de ajudar. A pesquisa sugere que, da mesma forma que ela é impactada pela doença e seu tratamento, pais, filhos e esposos participam da rotina de cuidados e podem auxiliar a criar um ambiente propício a bons hábitos e adesão às prescrições médicas.

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“Eu brinco que, se há um paciente com diabetes em casa, a família tem de virar diabética. Isso significa que ela deve atuar não só na aceitação e na realização do tratamento mas também na adoção de comportamentos saudáveis”, argumenta Couri. “Fazer exercícios, dormir direito e comer de forma equilibrada valem tanto para quem tem como para quem não tem diabetes.”

O abraço da família e o empoderamento do paciente contam pontos até quando o dia a dia vira de cabeça pra baixo, como na pandemia do coronavírus. “O estresse da quarentena me fez atacar a despensa e comer mais. Para dar conta da glicose, tive de aumentar a insulina. Com mais insulina, fiquei com mais fome, ganhei peso e tive hiperglicemia. Mas retomei o controle sobre a rotina, a alimentação e a atividade física, e as coisas melhoraram”, compartilha Vanessa.

Ora, o (auto)conhecimento também faz parte da receita de sucesso contra o diabetes. Hoje e lá na frente.



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