quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Será que eu estou roncando?

Podemos dividir uma investigação médica em sintomas e sinais. Sintoma é tudo que o paciente relata ao médico. Sinal é tudo que o médico observa no paciente — por exemplo, uma vermelhidão nas amígdalas que indica uma inflamação. O ronco não é nem um nem outro.

Não é sintoma, porque quem ronca não sabe que está roncando. E não é sinal, porque a pessoa (via de regra) não dorme durante uma avaliação médica. Costumo dizer que o ronco é uma reclamação de uma terceira pessoa, em geral o cônjuge que está acompanhando a consulta. Resultado: o ronco é frequentemente negado ou mal percebido.

De fato, o ronco está no ouvido de quem ouve. Quem já teve uma noite de insônia e ficou incomodado com o tique-taque de um relógio sabe que os sons corriqueiros podem se tornar ensurdecedores na calada da noite. A natureza foi muito cruel com os casais, porque os homens tendem a roncar, enquanto as mulheres sofrem mais com insônia. Colocar os dois problemas para dormirem juntos não me parece uma boa ideia.

Mas como surge o ronco? Ele é decorrente da vibração da musculatura da garganta, um sinal de que o relaxamento natural durante o sono causou obstrução parcial da passagem de ar. Além do barulho desagradável que dificulta o convívio social, o ronco pode indicar algo comum e mais grave: a apneia obstrutiva do sono.

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A apneia é causada pela obstrução completa da faringe em alguns momentos durante o sono. Como a passagem de ar fica comprometida, o paciente passa a fazer esforço progressivo para respirar, mas sem qualquer resultado. Ele só sai dessa encrenca com um micro despertar, que é um recurso do organismo para restabelecer o tônus da via aérea superior. Isso libera a fluxo de ar e provoca um ronco alto e ressuscitativo. O micro despertar, até por ser curto, não é percebido pelo indivíduo.

Esse ciclo pode se repetir centenas de vezes. Ou seja, enquanto a maioria das pessoas descansa no período noturno, o paciente com apneia trava uma luta extenuante sem sequer notar isso.

As consequências da apneia do sono são múltiplas: sonolência excessiva diurna, cansaço, dificuldade de concentração e de memória, sintomas depressivos e até maior risco de doença cardiovascular.

Esse problema é tremendamente comum. Em um estudo feito com mais de 1 mil adultos representativos da cidade de São Paulo submetidos à polissonografia (aquele exame que você passa a noite monitorizado), chegou-se à conclusão que cerca de um terço tem apneia do sono. Entre os pacientes com doença cardiovascular já estabelecida (hipertensão arterial ou arritmia cardíaca, por exemplo), essa cifra pode chegar a 50%.

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Atenção: a apneia do sono tem tratamento. Muitas vezes, ele envolve questões comportamentais, como dormir de lado (a língua tende a cair para baixo, fechando a faringe, quando você repousa de barriga para cima) e perder peso. Pois é: a deposição de gordura na língua e na faringe, uma consequência da obesidade, contribui para a obstrução da passagem de ar.

Mas o tratamento também pode incluir cirurgias, o uso de placas móveis na boca durante o sono… e o famoso CPAP (sigla em inglês para continuous positive airway pressure). Trata-se de uma máscara ligada a um compressor que abre a garganta enquanto você dorme.

Infelizmente, a maior parte das pessoas com apneia obstrutiva do sono no Brasil e no mundo segue sem saber que tem a doença. A boa notícia é que sistema simplificados de diagnóstico foram validados por estudos clínicos — hoje, uma parcela considerável dos pacientes consegue descobrir a presença desse problema no conforto do seu lar.

Em tempos de coronavírus, o cuidado deve ser redobrado. Um estudo italiano, por exemplo, constatou que 48,6% dos mais de 3500 indivíduos analisados ganharam peso durante a pandemia. Como o sedentarismo e a obesidade são dois fatores de risco para apneia do sono, é bom ficar de olhos e ouvidos atentos. Se alguém falar que você está roncando, acredite — e preste atenção nos sintomas que mencionei antes.

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É hora de maneirar na alimentação e fazer mais atividade física. Ninguém merece dormir mal.

*Geraldo Lorenzi é professor de Pneumologia da FMUSP e diretor do Laboratório do Sono do InCor



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