quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Nem toda epilepsia é igual

“Um dia, logo no início da noite, levantei para ir até a cozinha beber água e, ao passar em frente ao quarto do meu filho de 9 anos, escutei um barulho estranho e resolvi verificar. Eu o vi caído no chão, com movimentos descoordenados no corpo e na face, o olhar congelado e emitindo sons estranhos, sem responder quando eu o chamava. Entrei em pânico e comecei a gritar por ajuda. Para mim, naquele momento estava perdendo meu filho.

Logo ele se acalmou e ficou um tempo sem responder. Depois foi voltando aos poucos. Demorou para cair a ficha de que ele estava apresentando o que parecia ser uma crise epiléptica. Uma semana depois, aconteceu de novo, corri para o pronto-atendimento, mas a crise parou no caminho. Quase bati meu carro! Estou com medo que aconteça novamente e preciso saber o que ele tem!”

A maioria das pessoas não sabe o que é epilepsia. Falamos de uma doença que acomete o cérebro, levando a um desequilíbrio na transmissão entre os neurônios, que se traduz em crises de repetição. Essas crises nervosas ocorrem de diferentes formas e possuem diferentes causas. É como se estivéssemos diante de uma caixa de lápis de cor: cada criança tem uma causa diferente para a epilepsia.

As crises focais ocorrem quando a função elétrica cerebral anormal se manifesta em uma ou mais áreas de um lado do cérebro. Existem dois tipos de crises focais, sem alteração do estado de consciência e que geralmente duram menos de um minuto. Os sintomas dependem justamente da área do cérebro afetada. Se a função elétrica estiver desajustada no lobo occipital, por exemplo, a visão fica alterada.

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Mas existem crises focais marcadas por perda ou alteração da consciência e que duram entre um e dois minutos. Elas podem cursar com uma variedade de comportamentos e reações nas crianças: engasgo, estalo dos lábios, gritos, choros, risadas… Quando a criança recupera a consciência, costuma reclamar de cansaço ou sonolência.

Já as crises generalizadas envolvem disfunções em ambos os lados do cérebro e perda de consciência. Fazem parte desse grupo as crises de ausência, caracterizadas por uma breve perda de consciência. A criança mantém a postura e pode até movimentar a boca ou piscar, mas parece que está em outro lugar… A crise dura em torno de 30 segundos e ocorre várias vezes ao dia. Quando passa, a criança segue suas atividades como se nada tivesse acontecido.

Existem também as crises de queda: as atônicas, em que há uma perda do tônus muscular e a criança pode cair da posição em que está ou rebaixar repentinamente a cabeça; nas crises tônicas, por sua vez, há um aumento repentino do tônus muscular e a criança pode estender abruptamente braços ou pernas e também cair. Nem sempre é fácil diferenciá-las.

Também existe a crise tônico-clônica generalizada, mais conhecida como convulsão. Ela é caracterizada por três fases distintas na criança. Primeiro, o corpo, os braços e as pernas tendem a se estender, depois se contraem e tremem e, na sequência à crise, a criança pode ficar com sono, fadiga, alterações de visão ou fala e mesmo forte dor de cabeça ou pelo corpo.

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Por fim, ainda temos as crises mioclônicas, marcadas por movimentos rápidos ou espasmos repentinos de um grupo de músculos, e os espasmos infantis, tipo de crise que ocorre no primeiro ano de vida. Há uma alta taxa de ocorrência dessa crise quando a criança está acordando ou tentando dormir. O bebê geralmente tem breves períodos de movimento no pescoço, tronco ou pernas, que duram alguns segundos e podem ocorrer centenas de vezes por dia. Trata-se de um problema sério, com complicações a longo prazo.

A detecção desses quadros é primordial para dar início a um acompanhamento e tratamento médico adequados. O tratamento para a epilepsia engloba inicialmente medicamentos que combatem as crises. Eles são definidos pelo especialista com base no tipo de crise, idade da criança, efeitos colaterais, adesão e acesso ao fármaco. Em alguns tipos de epilepsia na infância pode até não ser necessário um tratamento medicamentoso em função da baixa frequência das crises.

Nas crianças cujas crises não estão bem controladas, ou que têm problemas com o uso das medicações, pode-se planejar uma dieta especial, a cetogênica, que é pobre em carboidratos, ajustada em proteínas e rica em gorduras. Ela ajuda a controlar a doença. O rol de tratamentos nessas circunstâncias inclui, ainda, o uso de canabidiol e um procedimento que estimula o nervo vago.

Em alguns casos específicos pode-se indicar uma cirurgia. Nesse procedimento complexo, que exige equipe altamente especializada, o cirurgião remove parte do cérebro onde as crises ocorrem ou interrompe a propagação dos sinais elétricos anormais ali. Essa opção exige uma avaliação detalhada a fim de determinar previamente se todas as convulsões partem de um local seguro para a remoção.

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Como se vê, existem vários tipos e manifestações do problema. Ficar atento a sinais suspeitos e acompanhar o desenvolvimento da criança com o pediatra é essencial para flagrar e buscar o controle da epilepsia.

* Dra. Letícia Sampaio é neurologista infantil e presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil 



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